Por: Carlos Costa
jornalista, professor da Faculdade Cásper Líbero e editor da revista diálogos & debates
Três temas me vêm à
memória neste momento, ao iniciar um comentário sobre o projeto de lei do ativo
deputado Sandro Mabel (PR-GO) tipificando o crime de violação de sigilo
investigatório.
O primeiro é que
somos o país dos bachareis e, embora o deputado Mabel seja formado em
administração de empresas e marketing, exerce com fecundidade seu múnus
legislador, com quase um milhar de propostas de emendas, projetos de lei e
medidas provisórias (suponho que seja esse o significado do MPV, uma das tantas
siglas não esclarecidas do portal da Câmara dos Deputados) em suas quatro
legislaturas. Há um animus legislandi
notável em nosso Congresso. Como se criar leis alterasse a nossa paisagem, que
ainda tem dívidas herdadas do século XIX, como a educação e o saneamento básico,
para não ir mais longe.
O segundo
pensamento ou lampejo foi sobre aquela história do rei que manda matar o
emissário, por causa da má notícia de que era o portador. Como dizia o título
de um belo livro dos anos 1990, escrito pelo jornalista francês Yves Mamou: “A
culpa é da imprensa”. Ao apontar as feridas, ela pode estar provocando danos
morais a pobres bicheiros, delegados em busca de fama e políticos corruptos que
se escondem na imunidade parlamentar.
E o terceiro tema é
um filmete que circula na internet, com um trecho do programa Bom Dia Brasil, da TV Globo. Esse filmete
traz a informação comparativa de quanto custa ao ano para os cofres públicos um
legislador: R$ 33 milhões de reais um senador, R$ 7 milhões um deputado federal
(não especifica se estão incluídos os 14º e 15º salários), R$ 6 milhões um
vereador de São Paulo ou Rio. Na França, o custo de um parlamentar é de R$ 2,8
milhões anuais contra R$ 859 mil na Espanha.
Após essa pequena
escalada, vamos ao comentário sobre o projeto de lei.
O deputado Sandro
Antonio Scodro, que trocou o sobrenome familiar pelo da marca de biscoitos que
foi propriedade de sua família, está carregado de boas intenções (aliás, sua
ficha no site da Câmara dá conta de um deputado com alto nível de participação
de votações e sessões legislativas, com uma média de quatro discursos mensais e
centenas de propostas e projetos de lei anuais).
Mabel pretende
proteger pessoas sob investigação, impedindo que a informações não confirmadas
ou suspeitas se convertam em acusações precipitadas. Para isso, propõe a
punição a jornalistas que publicarem informações que estiverem sob sigilo
investigatório, nas fases pré-processuais. De fato, nos últimos anos assistimos
a alguns casos deploráveis, de políticos ou educadores, médicos ou banqueiros
linchados em praça pública por atos que depois se revelaram lícitos ou
infundados (embora se pudesse discutir as diferenças entre lícito e moralmente
legal, algo que não cabe aqui).
A imprensa, na
busca pelo sensacionalismo que vende periódicos ou aumenta os índices de
audiência, faz lembrar o carcará, aquele que pega, mata e come. A fome pelo
espetáculo é cruel. Outro fator cruel é a busca pelo “furo”, ser o primeiro a
noticiar um fato, sem usar o tempo para checar a seriedade da informação. Para
não ir mais longe, lembro o caso daquela advogada brasileira grávida, atacada e
ferida com estiletes por grupo neonazista em Zurich. Meio como a Luísa que veio
do Canadá, ela se converteu em tema nacional, com o presidente Lula se
manifestando contra a xenofobia suíça. Um jornal português comprou a causa e
desandou desaforos contra os pacatos suíços, levantando casos recentes de
migrantes portugueses vítimas da animosidade suíça. Haja chocolate. (Todos
sabem no que deu esse furo do jornalista Ricardo Noblat em seu blog).
Mas a questão do
sigilo da informação é mesmo polêmica e há razões para todos os lados. O
ministro Ayres Britto, por exemplo, entende que se o jornalista sabe de algo
que está sob segredo de Justiça, e esse algo tem interesse público, não só pode
como tem a obrigação de revelar o que sabe. Afinal, a missão do jornalista é
informar. E para isso o jornalista deve ter livre acesso, como reza a
Constituição no parágrafo 1º do artigo 220, reforçando ainda mais a proteção da
liberdade de imprensa: “Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir
embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de
comunicação social”. O mesmo Ayres Brito, no episódio das marchas pela
discussão da liberação da maconha, declarou que “Nenhuma lei pode se blindar
contra a discussão de seu conteúdo, nem a Constituição está livre de
questionamento”.
A rigor, o remédio
proposto por Mabel parece inadequado, além de ser “visceralmente inconstitucional”,
como declarou ao Consultor Jurídico
o Dr. Manuel Alceu Affonso Ferreira, ilustre jurista e profundo conhecedor dos
meandros da imprensa, por seu trabalho junto ao jornal O Estado de S. Paulo. Foi a inadequação
do remédio proposto por Mabel que me fez lembrar do rei que mata o mensageiro
por causa da notícia indesejada.
A tarefa do
jornalista é apurar sem preguiça, ir a fundo na investigação, duvidar de
algumas fontes que entram em contato com “um excelente furo”. O professor
britânico Peter Burke, num texto clássico sobre “Como confiar em fotografias”,
já ensinava o mapa da mina: perguntar-se “quem está me passando essa notícia e
qual seu interesse?”. O que soa estranho nesta notícia que me passam? O que tem
a declarar o envolvido ou algum assessor do seu entorno? Sabemos que muitos dos
dossiês que pipocam na imprensa e se tornam capa das revistas semanais não é
fruto do meticuloso trabalho de apuração jornalística (até porque as empresas,
na sanha de cortar verbas, não dispõem mais de carros de reportagem, não pagam
viagens para seus repórteres, quase tudo é apurado na internet), mas resultado
de investigações encomendadas por grupos para atingir adversários.
Guardados esses
cuidados, tendo a notícia confirmada, que se publique. Como diz o grande
Lourival J. Santos, advogado que me acompanhou em diversos processos durante
meu tempo na Editora Abril, “a obrigação de manter o sigilo das investigações é
dos agentes forenses. Não cabe à imprensa se incumbir desse dever”. Quem não
quiser ver publicada a informação, que não a comente para um jornalista.