Um desembargador, um advogado e dois comerciantes transformaram o
Tribunal de Justiça de Minas Gerais em um balcão de negócios. É o que consta de
denúncia apresentada na última segunda-feira (6/2) pelo Ministério Público
Federal ao Superior Tribunal de Justiça.
A denúncia, à
qual a ConJur teve acesso com exclusividade, traz o
encadeamento da ação dos denunciados em três casos e é repleta de trechos de
depoimentos em que os próprios acusados, com exceção do desembargador, contam
detalhes do esquema de venda de decisões judiciais.
O desembargador
denunciado é Hélcio Valentim de Andrade Filho, que presidia a 7ª Câmara
Criminal do Tribunal de Justiça mineiro até ser afastado das suas funções, em
junho do ano passado, por decisão da Corte Especial do STJ. Apesar de o prazo
do afastamento imposto pelo STJ ter expirado, o desembargador continua inativo
porque responde, fora do cargo, a um processo administrativo disciplinar que
corre no Tribunal de Justiça de Minas Gerais.
O MPF denunciou
13 pessoas por corrupção passiva e ativa, mas são quatro os protagonistas da
trama narrada na denúncia. Além do desembargador, o advogado Walquir Rocha
Avelar Júnior, o comerciante Tancredo Aladim Rocha Tolentino e a também
comerciante Jaqueline Jerônimo Silva.
De acordo com a
denúncia (clique aqui para ler a íntegra), os
quatro tinham papéis bem definidos no esquema. Jaqueline recrutava os presos
interessados em comprar a liberdade. O advogado Walquir, que também é vereador
da cidade de Oliveira (MG), passava a representá-los judicialmente e contatava
o comerciante Tancredo, conhecido como Quêdo, que fazia a intermediação do
negócio com seu amigo, o desembargador Hélcio Valentim.
Com o dinheiro
em mãos, o juiz orientava o advogado para entrar com pedido de Habeas Corpus
quando estivesse no plantão judicial, em finais de semana. Então, determinava a
expedição de alvará de soltura dos presos. Nos três casos narrados na denúncia,
assinada pelo subprocurador-geral da República Eitel Santiago, as liminares foram
negociadas para favorecer presos por tráfico de drogas.
O MPF descreve
duas negociações que resultaram na liberdade de três presos e outra que foi
abortada porque os dois presos não tinham o valor de R$ 360 mil de propina
pedido pelos participantes do esquema. Segundo a acusação, “a Polícia Federal
somente conseguiu desvendar três casos, mas o quadrilheiro Quêdo relatou que a
quadrilha atuou noutros casos”.
Carros vermelhos
O primeiro caso relatado pelo Ministério Público na denúncia é o da liminar concedida
pelo desembargador Hélcio no dia 6 de fevereiro de 2011, um domingo, para os
presos Braz Correa de Souza e Jesus Jerônimo Silva. Segundo a denúncia, a
liminar custou R$ 240 mil, que foi dividido entre os acusados. O dinheiro foi
pago pela mãe de Souza, Rosa Conceição Durante Souza, e pela filha de Jesus
Silva, Jaqueline, que passou a integrar o esquema, ainda de acordo com o
Ministério Público.
As liminares
foram pagas com a transferência de dois carros, um Saveiro e um Strada, ambos
vermelhos, avaliados em R$ 90 mil, conforme disse em depoimento à Polícia
Federal o próprio advogado Walquir. A diferença de R$ 150 mil foi depositada
por Rosa Conceição na conta de uma funcionária de Quêdo, entre os dias 1º e 4
de fevereiro. Ou seja, dois dias antes da concessão da liminar.
O Ministério
Público narra que R$ 45 mil foram entregues pessoalmente pelo advogado a Quêdo.
Do valor, R$ 40 mil em espécie foram entregues nas mãos do desembargador em um
envelope de papel pardo, na Fazenda Getúlio, em uma cidade chamada
Cláudio, no interior de Minas Gerais. A informação foi prestada pelo próprio
Quêdo em depoimento à Polícia Federal.
Ainda ao depor
para a PF, o comerciante afirma ser amigo do desembargador há mais de quatro
anos e ter pedido vários favores a ele. “Ao obter sucesso, lhe dava certa
quantia em dinheiro, apenas como forma de agradecimento”, disse no depoimento.
Nos dias que
antecederam a concessão da liminar e um dia depois da libertação dos presos, o
desembargador Hélcio e o comerciante Quêdo trocaram diversos telefonemas. “Toda
essa comunicação entre os acusados tinha o objetivo de sincronizar a impetração
do Habeas Corpus com a data do plantão do denunciado Hélcio Valentim”, descreve
a denúncia.
"85 bilhetes"
O Ministério Público descreve um segundo caso semelhante ao primeiro. No dia 15
de maio de 2011, também um domingo em que o desembargador Hélcio estava de
plantão, ele concedeu liminar determinando a soltura do preso Leandro Zarur
Maia. O preso foi arregimentado, segundo a acusação, por Jaqueline, que já
tinha obtido uma liminar em favor do pai mediante pagamento.
A denúncia
narra que, desta vez, o preço cobrado pela decisão judicial foi de, pelo menos,
R$ 85 mil, dos quais, novamente, R$ 40 mil foram entregues ao desembargador em
mãos, em outro envelope pardo.
Com autorização
judicial, a PF gravou conversas telefônicas e obteve mensagens de texto
enviadas por celular (SMS) entre Walquir e Quêdo. Em uma das mensagens, enviada
pelo advogado ao comerciante em 20 de abril — quase um mês antes da concessão
da liminar — ele informa já estar com os “85 bilhetes”. No dia seguinte, o
advogado ligou para Quêdo para perguntar se havia recebido a mensagem. O
comerciante confirmou o recebimento e disse que já tinha mostrado para “o
homem”, que seria o desembargador, que estava ao seu lado.
De fato, no dia
20 de abril o desembargador Hélcio viajou de Belo Horizonte para a cidade de
Cláudio e se encontrou com o intermediário da venda das decisões na cachaçaria
de propriedade de Quêdo. O encontro foi filmado pela Polícia Federal e faz
parte de um dos anexos da denúncia. O dinheiro foi entregue ao desembargador em
um sítio na cidade de Carmo da Mata, também interior de Minas Gerais.
Da mesma forma
que ocorreu no primeiro caso, nos dias que antecederam a concessão da liminar
os quatro acusados trocaram vários telefonemas, também listados na denúncia. O
Ministério Público afirma que para garantir o acordo, o desembargador ligou
para uma escrevente do Tribunal de Justiça de Minas Gerais na sexta-feira
(13/5) e ordenou que os pedidos protocolados no dia 14 fossem distribuídos ao
desembargador Judimar Biber e os que chegassem no dia 15, fossem distribuídos
para ele.
A informação
foi prestada pela escrevente em depoimento à Polícia Federal: “Que, na
sexta-feira, antes do final de semana do dia 14 de maio, a depoente recebeu uma
ligação telefônica do desembargador Hélcio, orientando a depoente de que no
final de semana as ações protocoladas no sábado seriam dirigidas ao
desembargador Judimar Biber e no domingo a ele próprio; Que, pelo que a
depoente se recorda, o desembargador Hélcio teria dito que tinha um compromisso
no sábado”.
O advogado
Walquir afirmou à PF que, em uma de suas conversa com Quêdo, ele afirmou que
havia tomado “uma sacolada do homem”. Segundo o advogado explicou, era uma
cobrança para que eles se cientificassem que não havia corréus no processo de
Leandro para evitar que outros presos, que não pagaram pela liminar, fossem
beneficiados.
Viagem cancelada
No terceiro caso narrado pelo Ministério Público Federal a liberdade dos presos
não se consumou porque eles não conseguiram R$ 360 mil pedidos pelo advogado
Walquir. Consta da denúncia que os irmãos Thiago e Ricardo Bucalon, também
presos por tráfico de drogas, “souberam que alguns ‘sucessos’ obtidos pelo
advogado Walquir, e o contrataram para que comprasse a decisão concedendo-lhes
a liberdade”.
Ainda segundo
narra o MPF, o advogado procurou Quêdo, que consultou o desembargador Hélcio.
Com a resposta afirmativa para dar curso à negociação, foi estipulado o valor
de R$ 180 mil para cada um dos irmãos. Em depoimento à PF, Walquir informou que
Quêdo pediu R$ 300 mil. E que ele próprio acrescentou R$ 60 mil, que seria a
sua taxa pela participação no esquema.
A Polícia
Federal constatou que, apesar de o negócio não ter dado certo, o desembargador
Hélcio acessou o andamento processual do processo dos irmãos Bucalon pouco
depois de a negociação cair por terra. Em outra mensagem de texto enviada de
Walquir para Quêdo, ele informa: “Meu chefe, eu tive com aqueles 2 meninos de
Ribeirão, cancela a viagem dos 2. Não vão ter dinheiro. Depois te explico”.
De acordo com o
Ministério Público, também neste caso, apesar de a negociação não ter chegado
ao final, estão consumados os crimes de corrupção passiva e ativa. “A doutrina
e a jurisprudência advertem que a corrupção é crime formal, consumando-se com a
mera oferta (a postura ativa) ou sua aceitação (a postura passiva)”, sustenta o
MPF.
Jus Postulandi
A denúncia do Ministério Público Federal é resultado das investigações da
chamada operação Jus Postulandi, deflagrada pela Polícia Federal em junho do
ano passado. Na ocasião, Walquir e Quêdo foram presos e o desembargador
conduzido até o STJ, onde foi ouvido pelo ministro Massami Uyeda, relator do
processo. Depois disso, por unanimidade, a Corte Especial do STJ decidiu
afastar o desembargador do cargo.
Além de pedir o
recebimento da denúncia contra os 13 acusados, o MPF pede que o STJ prorrogue o
período de afastamento do desembargador de suas funções, desta vez fixando um
prazo de 360 dias. O subprocurador-geral da República, Eitel Santiago, também
pede que o STJ determine a Quêdo, Jaqueline e Walquir o comparecimento
periódico perante um juiz federal para justificarem suas atividades, a
proibição de saírem de suas cidades sem prévia autorização e o recolhimento
domiciliar noturno e nos dias de folga.
“As medidas
justificam-se por serem alternativa menos gravosa que a prisão preventiva dos
acusados, e por dificultarem que eles atuem com o propósito de embaraçar a
apuração dos fatos no curso da ação penal, que será certamente instaurada”,
sustenta o Ministério Público.
A reportagem da ConJur procurou ouvir os principais
personagens da denúncia. De acordo com a assessoria de imprensa do Tribunal de
Justiça de Minas Gerais, a orientação é a de que o desembargador Hélcio não dá
entrevistas sobre o caso. A assessoria também não soube informar outros
contatos diretos do magistrado ou de sua defesa, com o argumento de que o
processo está sob segredo de Justiça.
Os acusados
Tancredo Aladim Rocha Tolentino e Jaqueline Jerônimo Silva também não foram
encontrados para comentar a denúncia. Na casa da mãe do comerciante denunciado,
não souberam informar seu número de telefone celular. Nenhum deles retornou o
pedido de entrevistas até a publicação do texto. A reportagem falou com
o advogado Walquir Rocha Avelar Júnior. Ele afirmou não conhecer o
conteúdo da denúncia e respondeu que, depois de falar com seu advogado, se
achar conveniente retornará a ligação.
Walquir é
vereador do município de Oliveira, eleito pelo PTB. Em um blog que mantém na internet para, segundo
ele, prestar contas de seu trabalho aos eleitores, o advogado e vereador
afirma: “Entendo que a atividade legislativa deve ser pautada pela coerência na
vida pública alicerçada na ética e nos princípios que devem reger a
administração pública”. Seu último texto, publicado no dia 21 de janeiro, leva
o título: “Cadeia para prefeitos corruptos!”.
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