POR MARCELO NOGUEIRA
advogado no escritório Nogueira Empresarial.
Em todo ano
eleitoral, o fenômeno se repete. Alguém sempre aparece para convencer as
pessoas de que, votando nulo, as eleições podem ser anuladas, como um grande
protesto contra as mazelas da classe política.
De fato, não é novidade. Já era um dos
pilares dos anarquistas, desde o
século 19. E, no começo do século 20, essa estória já fazia sucesso. Para o
Anarquismo, votar nulo seria condição essencial para a própria liberdade, algo
como uma recusa em entregar o poder do povo nas mãos de um líder. O famoso
filósofo francês Pierre-Josef Proudhon, dentre outros, não distinguia entre
reis tiranos e presidentes eleitos democraticamente, afirmando: “Não mais
partidos, não mais autoridade, liberdade absoluta do homem e do cidadão.”
Quase um século depois de desvendada a
insustentabilidade da utopia anarquista, a intenção de utilizar o voto como
forma de protesto permanece, contrariando as probabilidades de uma era em que a
informação é fácil, livre e disponível a quase todos.
Ocorre que essa era digital e globalizada,
ao mesmo tempo em que permite que as informações se propaguem instantaneamente,
padece da falta de critério na qualidade dessas informações veiculadas,
trazendo riscos.
Por conta da desinformação, uma quantidade
considerável de eleitores (6,70% do eleitorado nas eleições presidenciais de
2010, por exemplo, o que significa cerca de 7 milhões de eleitores), frustrados
com a classe política, embalam-se no canto da sereia da anulação de votos como
forma de protesto, deixando de exercer seu direito e dever democrático de
escolher quem irá governá-los ou representá-los.
E o pior é que o fazem em troca de nada,
como a lenda dos marinheiros que, encantados pelas belas notas cantadas pelas
sereias, terminam naufragando. A metáfora é perfeita, afinal, na democracia,
estamos todos no mesmo barco e o destino de um é o destino de todos.
O tal boato de que a anulação espontânea dos
votos pode induzir à anulação da própria eleição é absolutamente desprovido de
qualquer base legal. Trata-se apenas de uma má interpretação do artigo 224 do
Código Eleitoral, que encerra o capítulo sobre as nulidades da votação.
O referido artigo deve, necessariamente, ser
interpretado em harmonia com os artigos 219 a 223, do mesmo diploma legal, para
que assim se possa extrair a norma (a regra) do texto da lei eleitoral.
Votar nulo não anula eleição, mesmo que os votos nulos correspondam
a mais de 50% dos eleitores. A anulação da eleição só pode ocorrer em razão de
nulidade decretada pela Justiça Eleitoral. E mesmo a Justiça Eleitoral só pode
anular a votação nas hipóteses legais que o Código Eleitoral determina. Dentre
as quais, não se encontra a anulação voluntária de votos pelo eleitor.
Segundo nossa legislação, a Justiça
Eleitoral só pode anular a eleição nas seguintes situações:
— localização de mesa receptora em propriedade pertencente a candidato, membro
do diretório de partido, delegado de partido ou autoridade policial, bem como
dos respectivos cônjuges e parentes;
— localização de seções eleitorais em fazenda, sítio ou qualquer propriedade
rural privada, mesmo existindo no local prédio público;
— extravio de documentos essenciais à votação;
— negativa ou restrição ao direito de fiscalizar, desde que registrado
imediatamente em ata;
— quando votar, sem preencher os requisitos que a lei determina, o eleitor
excluído por sentença não cumprida por ocasião da remessa das folhas
individuais de votação à mesa, desde que haja oportuna reclamação de partido ou
o eleitor de outra seção eleitoral, salvo aqueles que trabalham nas eleições;
— quando votar alguém com falsa identidade em lugar do eleitor chamado; e
— quando a eleição ocorrer com falsidade, fraude, coação, interferência do
poder econômico e o desvio ou abuso do poder de autoridade, em desfavor da
liberdade do voto, ou emprego de processo de propaganda ou captação de votos
vedada por lei.
Mesmo nessas situações, as votações só serão
anuladas se a quantidade de votos nulos ou anulados atingir a mais de metade
dos votos do país nas eleições presidenciais, do estado nas eleições federais e
estaduais, ou do município nas eleições municipais. Nesse caso, o tribunal
marca nova data para eleição, entre 20 (vinte) a 40 (quarenta) dias depois.
Tanto o voto em branco (quando o eleitor
escolhe a opção Branco) quanto o voto nulo (que não corresponde a qualquer
numeração de partido político ou candidato) não são considerados na soma dos
votos válidos.
Mas, se é tão clara a questão jurídica, por
que se fomenta esse boato?
Quem sai ganhando com isso é justamente quem
se desejava evitar: os piores candidatos, que precisarão de menos votos para
conquistar os cargos públicos. Trata-se do quociente eleitoral, que vem a ser o
número de votos válidos dividido pelo número de vagas, e do quociente
partidário, que é o número de votos do partido ou coligação dividido pelo
quociente eleitoral.
Nessa matemática eleitoral, eleitores bem
intencionados, que só desejavam expressar sua indignação contra os inúmeros
problemas da classe política, podem acabar servindo justamente a quem seria o
alvo de sua revolta, pois, um número menor de votos válidos possibilita que
políticos sem expressão ou mesmo rejeitados nas urnas tenham acesso aos cargos
políticos através do quociente partidário.
Ou seja, aquele candidato que o eleitor não
votaria de jeito nenhum, acaba eleito porque o eleitor anulou seu voto, em vez
de votar em outro candidato que não achasse tão reprovável.
Fato semelhante é o que ocorre com os
candidatos-protestos (Enéias, Tiririca etc), pois, a vontade de expressar a
indignação contra a classe política termina acarretando um grande número de
votos para esses candidatos que, por força dos quocientes eleitorais e
partidários, carregam à reboque candidatos que jamais teriam condições de
participar legitimamente do universo político democrático.
E, tal o canto das sereias na versão da
banda Paralamas do Sucesso, em vez da "novidade
que seria um sonho, o milagre risonho da sereia", o eleitor
encontra "um pesadelo tão medonho,
ali naquela praia, ali na areia". E a cada ano eleitoral,
veremos novamente a sereia cantar para inocentes marujos que, por falta de
informação, vão entrar "de gaiato
no navio".
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