Quando me preparava para escrever o artigo de conclusão de especialização em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas de São Paulo me senti
irresistivelmente atraído pelos primeiros artigos do Código de Defesa do
Consumidor. Fiquei assombrado, sobretudo com o relativo silêncio da doutrina e
jurisprudência sobre alguns de seus pontos mais fundamentais.
Autores do quilate de José Geraldo Brito
Filomeno, Nelson Nery Jr., Olga Maria do Val e Henrique Alves Pinto assinalaram
a importância dos Princípios da Política Nacional das Relações de Consumo,
contemplados no artigo 6º do Código, mas curiosamente o princípio apontado como
o mais importante de todos não mereceu nenhum trabalho específico, ao menos com
que me haja deparado em minha pesquisa. O princípio da harmonização dos
interesses dos participantes das relações de consumo remanesce como o princípio
esquecido – e, como tudo que se esquece, desprezado na prática.
O discurso do presidente Kennedy ao
Congresso americano em 1962 é apontado por muitos como o nascedouro do Direito
do Consumidor e é sintomático que esse direito de terceira geração haja
vicejado justamente na economia mais capitalista e liberal do mundo. É
que o Direito do Consumidor é um instrumento de equilíbrio, de dosagem das
forças em conflito no universo capitalista. O Direito consumerista nasce para
corrigir uma distorção, distorção que brota do balanço desigual de forças
econômicas do mundo capitalista, contudo, sua aplicação não passa, muitas
vezes, de estratégia de distribuição de riqueza.
A História demonstra com vívidas tintas o
perigo de, para se corrigir uma distorção, criar outra em sentido inverso. Este
não foi o interesse do legislador brasileiro, já que na Carta Magna estabeleceu
que a ordem econômica, que tem como princípio fundamental a livre iniciativa,
tem também como um de seus princípios a defesa do consumidor. São interesses
que não conflitam, mas concorrem para um mesmo fim. Este objetivo está
explicito no artigo 4º, III, do Código de Defesa do Consumidor, que estabelece
como um dos princípios da Política Nacional das Relações de Consumo a “harmonização dos interesses dos participantes
das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a
necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico... , sempre com base na
boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores”. O
equilíbrio é o fim máximo do direito do consumidor e, segundo Sergio Pinheiro
Marçal, o verdadeiro coração do Código de Defesa do Consumidor é o princípio do
artigo 4º, III.
Mas, se é assim, por que se costuma tropeçar
em sentenças judiciais em que se afirma, com orgulho justiceiro, que se
determinados modelos de negócio precisam deixar de existir para que
consumidores sejam protegidos, que assim seja? Por que o noticiário
frequentemente nos brinda com tentativas de Ministérios Públicos e Procons para
banir ou desfigurar completamente negócios de que os consumidores se valem de
forma massificada e nos quais, portanto, vêem virtudes? Onde estão os esforços
harmonizadores dos aplicadores do direito?
Um bom exemplo do esquecimento do princípio
da harmonização dos interesses nas relações de consumo é a forma descuidada
como operadores do Direito tratam prestadores de serviços de Internet. São
modelos de negócio novos, larga e alegremente adotados pelos consumidores do
século XXI e que, entretanto, para os operadores bem poderiam deixar de
existir, unicamente porque seu manuseio requer certos cuidados ainda
desconhecidos por uma parcela dos consumidores. Ora, banir ou desfigurar tais
ferramentas novas, impondo-lhes responsabilidades que, grosso modo, implicam em
desconsiderar completamente o imperativo de se verificar o nexo de causalidade
entre dano e atitude (ativa ou passiva) empresarial, não trabalha a favor do
consumidor nem muito menos do equilíbrio nas relações de consumo. Além de tudo,
tal medida despreza justamente a intenção do legislador de não coibir o avanço
tecnológico e econômico, mencionada na mesma norma. A mesma dinâmica se pode
enxergar em diversas atitudes hostis a outros modelos de negócio.
Um clamor para que se recupere a importância
do coração do código consumerista é minha homenagem ao princípio que ficou
esquecido.
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